Coautora do livro "Tinha que ser preto", Carolina Martins, fala sobre o livro e a importância de ir contra a censura.
Carolina Martins,
Jornalista formada pela Universidade de Brasília, onde atuou por 12 anos como repórter em cobertura política. Ela também é cofundadora e sócia da Cassangue Produções - produtora de Brasília que promove os valores e a cultura da população negra. Idealizadora, pesquisadora e apresentadora do podcast Geração 4P, que debate cultura, entretenimento e política com o recorte de raça. Realiza consultorias em roteiro de documentário e de série audiovisual. Carolina Martins é coautora do livro "Tinha que ser preto" (2022). Junto com tudo isso ela também é mãe do Murilo, um rapazinho que há 3 anos me ensina o que importa de verdade.
Por que o livro "Tinha que ser preto" teve que nascer?
O TINHA QUE SER PRETO é um livro que, desde o título, busca provocar reflexões. Um dos muitos objetivos é ressignificar essa expressão, usada em tom pejorativo para desclassificar o trabalho feito por pessoas negras. São 25 artigos de escritoras e escritores negros sobre os mais diversos temas - todos atravessados pela temática racial. Desde o acesso ao mercado de trabalho e à educação, até a relação com o cabelo, a descolonização dos afetos e a representação da população negra no audiovisual. O meu artigo é sobre matripotência, esse lugar de poder que encontramos por meio do portal da maternidade. E sobre as estratégias que precisamos desenvolver para criar uma criança negra em um país construído em modelos racistas. Utilizando a expressão criada por Conceição Evaristo, o livro reúne escrevivências do cotidiano, das lembranças, da experiência de vida de um povo que reivindica seu espaço como autor da própria história. É uma forma de mostrar nossas especialidades, em diversas áreas profissionais, e de apoiar o protagonismo negro.
A temática racial não pode mais ser um tabu. Aqui no Brasil somos a maior população negra fora do continente africano, somos mais da metade do país, e continuamos sendo tratados e retratados de forma subalternizada. O debate antirracista é urgente e é preciso que pessoas não-negras se responsabilizem e se envolvam nessa discussão. O livro TINHA QUE SER PRETO é uma importante ferramenta para promover esse engajamento.
Por que é importante levantar nossas vozes contra a censura?
Liberdade é uma das palavras que mais gosto. Por tudo que ela representa, pela sonoridade, pelos lugares que ela atinge. Acho forte. E me fortalece. Liberdade de ser. Liberdade de existir. Liberdade para mudar de ideia. Liberdade pra ir, pra ficar, pra voltar. São muitos os sentidos poéticos. Além dos direitos garantidos por lei: liberdade de crença, de imprensa, de manifestação do pensamento. Liberdade de expressão, de exercício da profissão, de locomoção. E até essa liberdade que uso aqui, de rimar poesia no texto da Constituição.
Ainda é um trabalho árduo ser uma mulher negra e livre. Ainda há muitas correntes invisíveis que limitam nossa existência. Atitudes que distorcem o próprio sentido da liberdade para desrespeitar e cometer abusos - muitos deles criminosos. Por isso, considero essencial se posicionar contra toda e qualquer tentativa de tolhimento da liberdade, dentre elas, a censura.
Você acredita que a palavra feminista tem se tornado pesado para as mulheres atualmente?
Eu acho que pesado é o sistema patriarcal que subjuga as mulheres. Acredito nos feminismos, no plural. Precisamos lembrar que as mulheres são plurais, as demandas são diversas e há vários tipos de ativismo em defesa de direitos. Acreditar que mulheres negras serão contempladas pelo feminismo, no singular, é cair na mesma armadilha da "democracia racial", como bem nos ensinou Lélia Gonzalez. Não podemos reduzir a luta feminista ao que desenharam dela no imaginário social, tentando, de maneira rasa, contrapor homens versus mulheres. Esse embate nem considera as pessoas negras como sujeitos. Nesse sentido, o feminismo negro e a filosofia do mulherismo africana são as perspectivas que abrangem as mulheres negras - e toda a multiplicidade de pessoas, com singularidade de vivências, que nos atravessam enquanto povo.
Como desconstruir os estereótipos sobre a mulher negra?
Penso que qualquer 'modelo', mesmo os de desconstrução, acaba construindo, por outra via, um novo estereótipo. Não gosto de fórmulas. Sei da importância delas para Química, mas contesto todas que tentam definir pessoas. Nós, mulheres negras, precisamos primeiro entender que nossas subjetividades foram forjadas em uma sociedade racista. Qualquer modelo nesse contexto nos coloca num lugar de subalternidade. Entender isso é acessar a liberdade de poder se construir por outra ótica, pela ótica da afrocentricidade. É o caminho para entender o nosso real valor na História da humanidade. A partir disso, a gente se permite ser o que quiser. E pelas nossas atitudes individuais vamos mostrando ao mundo que não adianta mais nos encaixotar. Pela minha postura, nas minhas relações, vou quebrando os conceitos do que "esperam" de uma mulher negra. Cada uma de nós, nos próprios círculos de convivência, vai fazendo isso.
É um trabalho contínuo, de formiguinha, seguindo as pegadas das que vieram antes de nós e possibilitaram esse tipo de expressão muito mais livre. E abrindo trilhas para as que estão chegando, ainda mais libertas.
Quais mulheres negras te inspiram até hoje?
Começando pelas grandes divas da cultura pop, tenho que citar Beyoncé, que é muito emblemática. Quando conheci Destiny 's Child, no início da minha adolescência, fui abraçada por uma sensação que nunca vou esquecer. Foi uma das primeiras vezes que vi mulheres parecidas comigo num lugar de glamour, de beleza, de poder. Muito diferente do que eu via até então no Brasil - escravizadas em novelas de época, ou erotizadas na vinheta de Carnaval. A cantora Alicia Keys também teve um grande impacto, nesse meu contexto. E aí preciso citar a música "My Boo", parceria dela com o Usher, lançada em 2004. Ver um casal de jovens negros, bem-sucedidos, trocando afeto na tela da MTV era um refúgio pra mim - que na época tinha 15 anos e era uma das únicas meninas negras da escola. Resumindo, o R&B estadunidense dos anos 2000 tem um peso importante no meu percurso. Sabemos que a indústria cultural faz muito bem o seu papel de moldar comportamentos - e pessoas negras, no Brasil, apenas muito recentemente começaram a ser entendidas como consumidoras. Depois, já na faculdade, comecei a ter acesso à intelectualidade negra - que é completamente apagada dos currículos escolares no Brasil. Lélia Gonzalez, Angela Davis, bell hooks são inspiração sempre. Mais recentemente, em contato com a produção contemporânea, adicionei Helena Theodoro à essa lista. Não posso deixar de citar as mulheres negras que formam o meu quilombo particular: minha irmã, Nathália Cruz, e minhas primas Eliana Silva, Adriana Martins, Fernanda Almeida e Lucélia Chaves. Além da minha tia Aparecida Martins que, mesmo do outro plano, segue sendo carinho e cuidado.
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