Em entrevista, Dra. Roziane Jordão de Rondônia, fala sobre seu livro autobiográfico "O Diário de Roziane Jordão: das portas da maternidade para o auditório da universidade" 

25/11/2022

"Precisamos falar sobre isso para deixar bem enfatizado que a nossa liberdade não é fruto da suposta bondade de uma princesinha colonial como insistem os livros didáticos, a nossa liberdade é a nossa luta! A nossa luta é a nossa liberdade!" - diz Roziane Jordão 


Roziane Jordão 

Além de autora do livro autobiográfico "O Diário de Roziane Jordão: das portas da maternidade para o auditório da universidade" e sobrevivente de uma pandemia mundial de vírus mortal, sou também Licenciada e Mestra em Letras, bem como Doutora em Antropologia Social, sou Mulher....

Até agora, gestei e pari dois filhos biológicos, um Trabalho de Conclusão de Curso, uma Dissertação de Mestrado, uma Tese de Doutoramento, um livro autobiográfico e uma porção de artigos científicos! Tenho sei lá quantos poemas engavetados e cadernos rabiscados.

Sou natural de Ji-Paraná, uma cidadezinha do interior de Rondônia, mas cresci e fui criada na roça! Roça é o nome que damos aqui pras bandas do Norte brasileiro para aquelas pequenas propriedades do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária que são mantidas pela agricultura familiar de subsistência. Pois bem, é isso! Meu pai, um homem preto, pobre e muito inteligente, trabalhou de sol a sol nas atividades agrícolas, nos serviços de pedreiro, de motorista, de operador de motosserras e outros tantos trabalhos pesados para "sustentar" financeiramente a nossa família. Minha mãe, uma mulher branca, pobre e muito resiliente é a dona de casa perfeita! Daquela geração de mulheres perfeitas, sabe? Que eram educadas para dar conta de tudo e que preparam as refeições mais deliciosas do mundo, mulheres educadas para servir. Serviu meu pai durante 32 anos de casamento civil e, depois da maioridade dos filhos, os dois optaram pela separação conjugal e ambos seguem vivendo suas vidas separadamente. Sabe aquelas relações amorosas daquelas de Vinícius de Moraes? Assim foi o amor entre os meus pais, "infinito, enquanto durou". Eu escreveria um livro sobre meus pais! Eles são os pais mais incríveis que alguém poderia ter. Aprendi, e aprendo, muitas lições de vida e de afeto com eles.

A principal inspiração paterna que levo é a de ocupar os espaços que eu quiser e não abaixar a cabeça para uma sociedade racista, machista e elitista. Agora, por exemplo, enquanto concedo esta entrevista ele está lá pelas bandas da Europa conhecendo monumentos históricos e trabalhando, trabalhando muito, como sempre fez; já minha mãe me ensina a ser perseverante, contínua, insistente, e, apesar de ser delicada como uma Rose (que é o seu nome), é também forte, muito forte.

Como já disse, cresci e fui criada no sítio. As perspectivas de estudo eram mínimas, mas não desisti. Toda minha trajetória escolar foi em escola pública. Embora tenha tido professores incríveis no início do ensino básico, sou autodidata, porque a base da minha educação intelectual foi construída em um processo solitário mesmo, dentro do quarto de uma casinha de madeira no meio da floresta amazônica, devorando os livros didáticos usados que meu pai trazia da cidade para mim. Assim, concluí o Ensino Fundamental pelo provão multisseriado e depois o Ensino Médio, pelo ENEM.

Casei aos dezesseis anos com um menino de dezenove! Eu não tinha nada e ele nada tinha.... Risos. Tínhamos apenas coragem e uma boa dose de paixão pela vida e pela natureza. É o principal sentimento que nos une até hoje.

Você pode me ver de pé diante do auditório lotado, performando uma pesquisadora de resultados. Essa mulher que você pode ver, que todos podem ver sendo aplaudida pelo público é uma ínfima partícula do universo que sou.

Quando despertou o desejo de escrever um livro autobiográfico: O Diário de Roziane Jordão: das portas da maternidade para o auditório da universidade?

Então.... Embora eu tenha alcançado nível superior de ensino e pós-graduação stricto sensu a partir de muito, mas muito esforço mesmo, não sou meritocrática. Tenho consciência de que, de onde eu venho, a minha trajetória não é a regra, é a exceção. Na teoria, sabemos que todas as pessoas deveriam ter igualdade de condições para acessar direitos e cumprir deveres. Na prática, a gente padece o peso de ser mulher, ribeirinha, preta, mãe....

Foi justamente pensando nessas relações desiguais de poder e nos sentimentos, conquistas e frustrações que experimentei nos últimos dez anos, dentro da universidade (e fora dela), que resolvi escrever meu livro de memórias autobiográficas.

Como a arte e a música entraram na sua vida?

Padeço as dores e saboreio as delícias de ser quem sou. Gosto de preparar sobremesas e bolos decorativos, pintar painéis e de tocar partituras clássicas no órgão eletrônico. Pois bem, saber tocar órgão eletrônico é uma técnica que aprendi com a minha irmã que aprendeu com a minha mãe, e pretendo passar para os meus filhos que serão orientados a passar para os filhos deles, se eles assim os tiverem.

Arte, música, escrita e poesia são tão essenciais quanto respirar! Eu não consigo vislumbrar um mundo sem arte, eu me constituo a partir desse universo de significados artísticos e nada do que sou faria sentido sem música, cores e poesias.

Muitos falam sobre a consciência negra, no mês de novembro, mas sabemos que essa consciência deve ser promovida no nosso dia a dia os 365 dias do ano. Como você visualiza essa data?

Sabe aqueles negros de sucesso cujas trajetórias são exploradas pela mídia meritocrática no mês de novembro? Eles não são a regra pós-colonial, eles são a exceção! A realidade está nua e, pela sua nudez escancarada, poucos há que desejam vê-la.

Para emergir desse charco imposto, é necessário reEXISTIR! O passado de escravização de pessoas negras é uma das veias abertas da nossa sociedade. Uma sangria recém estancada, uma ferida cujas cicatrizes ainda causam dores e cuja profundidade deixou sequelas incontornáveis!

Precisamos falar sobre isso para deixar bem enfatizado que a nossa liberdade não é fruto da suposta bondade de uma princesinha colonial como insistem os livros didáticos, a nossa liberdade é a nossa luta! A nossa luta é a nossa liberdade!

Há 130 anos, no Brasil, as pessoas negras eram vendidas na feira. Há míseros 130 anos! Há 86 anos, as mulheres não podiam votar! Praticamente ontem, há 30 e poucos anos, as pessoas que discordavam do regime eram torturadas até a morte e noticiadas como desaparecidas... Quem vendia negros e explorava o trabalho deles não deixou de fazer porque, de repente, se arrependeu. Essas pessoas ficaram muito irritadas quando deixaram de ser legalmente protegidas.

Quem impedia o voto das mulheres não ficou satisfeito em vê-las diante das urnas. Quem torturava pessoas que não se enquadravam, até hoje, não prestou contas sobre os desaparecidos...

Essas pessoas (racistas/ machistas/militares autoritários) não deixaram de existir em nossa sociedade, elas estão todas por aí e clamam ávidas e descontroladas por (editado) alguém que as represente! Essas pessoas são contra as cotas de acesso às universidades (porém os filhos são "classe A", e gabam-se por comprar a educação), classe média, donos de empresas ou apadrinhados pelos donos. Para essas pessoas, a filha do pedreiro negro tem que mostrar o mesmo "mérito" que seus filhos embranquecidos, o adolescente marginal tem que se portar com dignidade (afinal, o que é dignidade?!), as mulheres negras (que mulheres negras? Elas simplesmente não existem para eles, além da lavanderia).

Eu visualizo a data da consciência negra como menos do que o básico e o mínimo que essa sociedade nos deve. E o mínimo que nos deve é respeito em todos os dias e meses do ano.

 Para as mães estudantes, quais conselhos daria para elas?

Então, Olhando para essa mulher gigante aqui concedendo uma entrevista, muito senhora de si mesma e de bem com a vida, é quase impossível ver uma garotinha minúscula e tímida que chora escondida de medo e vergonha... ambas são a mesma pessoa e andam de mãos dadas sempre, conciliando emoções e administrando suas próprias responsabilidades.

E o que isso tem a ver com as demais mães? Tudo a ver! Nenhuma de nós é perfeita, somos quem podemos de ser, mesmo com todas as nossas limitações e sensações de impotência que experimentamos, o importante é lembrar que primeiro vem a mulher (com seus sonhos, projetos e desejos) depois a mãe; a maternidade é um desses projetos e não o único propósito da nossa existência social.

Olhando o cenário político e as leis voltadas para as mães, o que você acha que deveria mudar ou acrescentar, em prol dessas mulheres?

Olhando a atual conjuntura, sei que estou à frente do meu tempo, em um futuro próximo, espero que ser mulher, ser mãe e ser casada não se configure empecilho para nada. São responsabilidades que assumimos para manejar e não algemas simbólicas.

Olha só que lindeza o artigo quarto da Lei 8.069 de 13 de julho de 1990: "art. 4º: É DEVER da família, da COMUNIDADE, da SOCIEDADE em geral e do poder público assegurar (à criança e ao adolescente), COM ABSOLUTA PRIORIDADE, a efetivação dos direitos referentes à VIDA, à SAÚDE, à ALIMENTAÇÃO, à EDUCAÇÃO, ao ESPORTE, ao LAZER, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao RESPEITO, à liberdade e à CONVIVÊNCIA familiar e COMUNITÁRIA".

Eu sou apaixonada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, seria utópico viver em uma sociedade que partilha desse processo. Não estou transferindo as responsabilidades dos pais para a comunidade, estou apenas refletindo que nossas crianças são a continuidade do nosso grupo, seja ele familiar, religioso, profissional, artístico... Caso um grupo não aceite crianças, este grupo está fadado à extinção. Ninguém está aqui cogitando a possibilidade de alguém oferecer mamadeiras frescas e preparadas para o filho alheio, estamos falando sobre olhares, sobre afeto, sobre compreensão, sobre igualdade de condições, sobre ser humano!

Infelizmente, nossa presença nos espaços públicos de ascensão social (principalmente a universidade e o mercado de trabalho) não é efetiva e garantida por políticas públicas, é apenas tolerada sob olhares de reprovação, salários desiguais para homens e mulheres ocupando o mesmo cargo, rescisão contratual após o retorno da licença maternidade! Sim, tem a lei que menciona um prazo, as empresas contam esse prazo nos dedos inchados pelo capital e jogam essas mães como excedentes.

Por que isso acontece? Porque as mulheres estão sobrecarregadas, cuidando dos filhos praticamente sozinhas, precisam dar conta de tudo e de todos, não há equilíbrio, não há rede de apoio. Nós somos invisíveis para o sistema que nasceu do nosso próprio útero, mas foi moldado e construído de homens para homens!

Quais os valores que movem o seu trabalho e o seu cotidiano?

Sou entremeios, sou construção e desconstrução. Dentro das minhas vivências e sobrevivências, vou desenhando minha coerência a partir de outras tantas incoerências. Sou a filha que almeja colo e também a mãe que oferece beijos lambuzados para curar os joelhos ralados; sou a irmã mais nova da minha irmã mais velha, ao mesmo tempo em que sou a irmã mais velha do meu irmão mais novo; sou professora e sou aluna.

Permeio universos conflituosos e habito ambientes que foram socialmente construídos para excluírem-se mutuamente, como por exemplo: maternidade e pesquisa científica, religião cristã e feminismo, casamento hetero e liberdade....

Sou agente de relações que foram criadas socialmente para serem dicotômicas, mas vivo tecendo meios de conciliação, de continuidades e descontinuidades entre esses espaços e instituições e quem eu era, quem sou e quem pretendo ser.

Poderia enviar uma mensagem para os leitores que irão saber sobre seu trabalho agora?

O Diário de Roziane Jordão: das portas da maternidade para o auditório da universidade é para todas as pessoas que têm ou nasceram de um útero!

Não é uma biografia daquelas de gente famosa, sabe? Cujos melhores escritores são contratados para imortalizar uma personalidade da fama, não. O processo que acontece ali é o oposto: estamos percorrendo entre memórias autobiográficas, secionadas, entrecortadas. Memórias de uma mulher que, não fosse os mais de cem quilos distribuídos em quase dois metros de altura, passaria despercebida entre a multidão.

Memórias de alguém que vem de tão baixo nas escamas das relações de poder que causa até espanto vê-la aqui emergindo com voz trêmula e dissonante. Antes, estão no livro reunidas umas palavras pingadas, fluidas, molhadas, a maioria delas escritas entre os arroubos adolescentes e as primeiras lágrimas adultas.

Onde os leitores podem encontrar seu livro?

Com o evento oficial de lançamento marcado para os primeiros meses de 2023, "O Diário de Roziane Jordão: das portas da maternidade para o auditório da universidade" já está disponível para aquisição a partir do site da Editora Viseu e da Amazon.

Comercialização do livro impresso: Site da Viseu, Amazon, Americanas, Magazine Luiza, Shoptime e Submarino. Comercialização do e-book: Amazon, Apple, Barnes & Noble (EUA), Google, Kobo, Livraria Cultura e Wook (Portugal).

Alguns links para acesso: